26 dezembro 2011

A naturalidade divina...



"(...) Dançando sem repouso e ao mesmo tempo em
todos os mundos. Em todos os mundos!
Principalmente no mundo da matéria. Olhem o
grande halo, cercado pelos símbolos do fogo,
dentro do qual o deus está dançando. Aí está
para defender a natureza, para defender o
mundo da massa e da energia. Dentro dele, Shiva
Nataraja dança a dança infinita, a dança
apropriada à morte. É o seu lila, sua diversão
cósmica. Como se fosse uma criança que brinca
pelo simples prazer de brincar. Mas essa criança
é a ordem das coisas. Seus brinquedos são as
galáxias, o espaço infinito é o seu pátio de
recreio, e entre cada um dos seus dedos há um
intervalo de milhares de milhões de anos-luz.
Observem- no lá no altar. A imagem foi feita pelo
homem e não passa de uma figura de cobre, de
um metro e vinte de altura. Mas Shiva-Nataraja
preenche o Universo, é o próprio Universo.
Fechem os olhos e vejam-no altaneiro dentro da
noite, vejam como distende seus braços infinitos
e o modo como seus cabelos desordenados
esvoaçam sem cessar. Nataraja brincando entre
as estrelas e os átomos. Ele também está
brincando no interior de cada ser vivo, de cada
criatura dotada de sensibilidade, de cada
criança, de cada homem e de cada mulher.
Brinca pelo prazer de brincar. Mas nesse
momento o pátio o sente e a pista de danças
está capacitada a suportar o sofrimento. Para
nós, essa dança sem objetivo parece uma
espécie de insulto. O que realmente gostaríamos
de ter era um deus que nunca destruísse o que
tivesse criado. E, se o sofrimento e a morte
tivessem de existir, deveriam ser distribuídos por
um deus pleno de eqüidade, que punisse os
maus e premiasse os bons com a felicidade
eterna. Na realidade, o bom é atingido e o
inocente sofre. Deveria existir um deus que nos
compreendesse e nos trouxesse conforto. Mas
Nataraja se limita a dançar.
Brinca imparcialmente com a morte e com a vida, com
todas as coisas más e com todas as coisas boas.
Na mais alta das suas mãos direitas, ele segura
o tambor que põe em movimento o ser que
existe no Nada. E o tambor rufia o toque cósmico
da alvorada. Olhem agora para a mais alta das
suas mãos esquerdas. Brande o fogo com o qual
tudo que foi criado é imediatamente destruído.
Dançando de um modo, cria a felicidade! De
outro, cria a dor, o terrível medo, a desolação.
Decide-se a saltar e a pular. Num pulo, a saúde
perfeita. Num salto um pouco mais largo, eis o
câncer e a senilidade. Com outro salto, afasta-se
da plenitude da vida e cai no Nada. Do Nada,
salta novamente em direção à Vida. Para
Nataraja tudo é brincadeira. A brincadeira é seu
eterno e inútil objetivo. Ele dança e a dança é
seu maha- sukha, sua infinita e eterna bênção.
Eterna bênção!

O dr. Robert repetiu, em tom de dúvida:
— Eterna bênção?
Balançou a cabeça e prosseguiu:
Para nós a bênção não existe. O
que existe é a oscilação entre a felicidade e o
terror. A essa oscilação vem se acrescentar um
sentimento de ultraje, toda vez que pensamos
que nossas dores e nossos prazeres, nossa vida
e nossa morte nada mais são que uma parte da
dança de Nataraja. Pensemos com calma no que
acabei de dizer.
(...)
— Sofrimento e doença, velhice, decrepitude e
morte — continuou o dr. Robert. — Eu lhes
mostro o sofrimento. Mas isso não foi a única
coisa que Buda nos mostrou. Ele também nos
mostrou o fim do sofrimento.
(...)
— Abram bem os olhos e olhem para o Nataraja
que está no altar. Observem-no detalhadamente.
Em sua mão superior direita, como vocês já
viram, ele segura o tambor que chama o mundo
para a vida, e em sua mão superior esquerda
segura o fogo da destruição. Vida e morte,
ordem e desintegração, imparcialmente
distribuídas. Agora, olhem para o outro par de
mãos de Shiva. A mão inferior direita está erguida
e com a palma voltada para fora. Qual a
significação desse gesto? Ele quer dizer: "Não
tenha medo, tudo está bem". Mas como pode
alguém se impedir de ter medo? Como fingir que
o mal e o sofrimento sejam coisas certas,
quando a evidência de que são erradas é tão
óbvia? Nataraja tem a resposta. Agora,
observem sua mão inferior esquerda e vejam
que com ela está apontando para os pés. E os
pés, que estão fazendo? Olhem com cuidado e
verão que com o pé direito ele pisa numa
pequena e repelente figura subumana: o
demônio Muyalaka, que, embora sendo um anão,
é dotado de um imenso poder de malignidade.
Muyalaka corporifica a ignorância, representa a
ganância e o egoísmo exagerado. Esmaguem-no,
quebrem-lhe as costas! É exatamente isso que
Nataraja está fazendo. Esmagando o pequeno
monstro sob seu pé direito.
Convém que observem que não é para o pé direito que ele está
apontando com o dedo, e sim para o esquerdo. O
pé que, no ato de dançar, ele está levantando do
chão. E por que aponta para ele? Por quê?

Aquele pé erguido, aquele desafio dançante à
força da gravidade é o símbolo da sublimação,
do moksha, da libertação. Nataraja dança ao
mesmo tempo em todos os mundos: no mundo
da física e da química, no mundo da rotina, do
demasiadamente humano e, finalmente, no
mundo da Semelhança, da Inteligência, da
Luminosidade.
(...)"

- "A Ilha", por Aldous Huxley, págs 212, 213, 214.
tradução de Gisela Brigitte Laub, 8ª Ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974

(deu pra perceber que eu super recomendo esse livro. haha)

Shiva, Gaia, ou qualquer outro nome ou Deus(a) que queira atribuir.
O que quero lhes mostrar é simplesmente a visão da naturalidade do suposto movimento divino sem a intervenção das vontades humanas...

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